1 de dezembro de 2018

A propósito do piedoso e bom povo que somos.

Um caso recente, sobre antigas propriedades foreiras, levou-me a folhear, mais uma vez, o precioso estudo histórico-jurídico "Arouca e o Fisco", publicado em 1897 pelo doutor Adriano Carlos Vaz Pinto. Trata-se de uma edição muito rara, com os exemplares ainda hoje existentes quase a desfazerem-se, mas muito rica sobre diversos pontos de vista, e que vale a pena ser conhecida e copiada, senão mesmo transcrita e republicada. Com efeito, o referido estudo, é o que, em minha opinião, melhor analisa e sintetiza a controversa questão da extinção dos foros que durante muitos anos se continuaram a pagar ao extinto Mosteiro de Arouca.

Longe de querer retirar mérito e desmerecer a paternidade comummente atribuída ao doutor Inácio Teixeira Brandão de Vasconcelos sobre essa questão, o certo é que não pode ignorar-se o empenho e clarividência com que o também foreiro Vaz Pinto analisou o assunto e defendeu a extinção, como deve ser, do ponto de vista histórico, legislativo, doutrinário e jurisprudencial, deixando aos vindouros a transcrição de documentos de relevantíssimo interesse para a questão em analise, mas também para a história de Arouca. O que, inevitável e justificadamente, o coloca, se não mais, a par de Brandão de Vasconcelos, no que a essa questão histórica diz respeito.

Mas essa, no entanto, não é a questão que mais pretendo relevar desta feita, também com créditos a esse nosso ilustre conterrâneo.

Aqueles que se interessam por estas coisas da nossa história e que já se tenham deparado com a data em que, oficialmente, se declarou a extinção dos foros sobre a exploração das terras que outrora se pagavam ao Mosteiro, sendo também conhecedores da extinção dessa Casa em 1834, ou até mesmo se se preferir em 1886 (ano em que faleceu a última monja), acharão certamente muito estranho que os arouquenses tenham continuado a pagar foros até tão tardiamente, mais concretamente até 4 de junho de 1898.

Esse 4 de junho, de resto, pela importância de Dia da Independência que se lhe atribuiu - muito mais até que ao 1 de dezembro de 1640 -, foi mesmo considerado como um dos dias historicamente mais relevantes para a vida dos arouquenses, sendo mesmo consagrado como feriado municipal. E foi assim até 19 de março de 1956, data em que se alterou o feriado municipal para 2 de maio, dia em que faleceu a Rainha Santa Mafalda.

Pois bem, em face da lei e jurisprudência (já especificamente sobre os foros do Mosteiro de Arouca) a remontar a 1832 e 1846, respectivamente, pagaram os arouquenses os foros até tão tarde, porque, - à falta de melhor explicação -, somos piedoso e bom povo!

Com efeito, como se sabe, o Mosteiro de Arouca tinha sido um dos mais ricos do país, mas, depois da implantação do liberalismo e extinção das ordens religiosas ficaram as monjas privadas das vastas propriedades que possuíam e, progressivamente, se viram também impedidas de reclamar foros cobrados noutras terras, vendo-se reduzidas aos foros que percebiam no concelho de Arouca e pouco mais.

Negar-lhes os foros por completo era reduzi-las à quase miséria e impossibilita-las, portanto, de continuarem a sustentar o culto da sua patrona Rainha Santa Mafalda, que elas exerciam sempre com grande esplendor, atraindo ali em numerosa peregrinação os fieis que de longe vinham implorar socorro ou agradecer os benefícios alcançados por intercessão daquela Santa, que escolhera Arouca para sua última jazida. Todas as grandes festas religiosas do ano eram celebradas no vasto templo do Mosteiro com magnificência e luzido brilho; e não havia miséria em Arouca que não encontrasse conforto e amparo nos sentimentos piedosos daquelas boas almas, sempre prontas a acudir aos deserdados da fortuna. 

Por isso, os arouquenses, apesar de não terem conseguido, de todo, socorrer as monjas da miséria a que foram deixadas - e muito menos «algumas meninas de coro e criadas, estando estas todas decrepitas e algumas entrevadas, pobres e sem família» -, continuaram a ajuda-las a desempenharem a sua elevada missão como podiam, nomeadamente, pagando impostos que há muito já não eram devidos. Atitude apenas digna de piedoso e bom povo!