9 de novembro de 2018

Dos equívocos entre o Marialva e a Agualva.

Alegoria da Água e da Terra
Quem percorre a parte antiga da vila, até ao canto onde outrora a Lavandeira e a Gualva se punham à conversa de pés postos na água, depara-se com uma moça, herdeira daquela segunda, estendida sobre um velho senhor. Quem os conhece bem, sabe que a jovem Agualva faz tempo aí se deita sobre o velho Marialva, cobrindo-o de jusante para montante, onde lhe afaga a garganta e lhe sossega a impetuosidade que outrora o fazia desabrir-se e cavalgar vila abaixo, levando tudo à frente... como sucedeu em 29 e 34 do século passado.

A impetuosidade de 1929 foi tal que deslocou pedras e poldras, danificou e derrubou pontes e amolgou gradeamentos. Em 1934 o desarranjo não foi tamanho, mas levou a que fossem adoptadas medidas com vista a pôr cobro aos ímpetos que ao mais precipitado acicate lhe faziam rasgar as vestes e de manso o transformavam em destruidor, amedrontando até os parentes Gondim e Silvares que, timidamente, seguiam no seu encalço, para se juntarem e irmãmente se atirarem para leito comum. Não tardou, ainda vivo, foi aqueloutro amordaçado e enterrado, assim permanecendo desde 30 de Junho de 1949, não se lhe conhecendo até hoje qualquer outra agressão ou ofensa.

Insistentemente, à jovem parece quererem dar o nome do velho e amordaçado senhor, mas, é também a ele que frequentemente dão o nome dela. O caso mais paradigmático é recente: sucedeu entre 2013 e 2017, no âmbito de uma ação de despoluição do velho senhor levada a cabo pela Câmara Municipal. Anunciou-se então a ação a levar a cabo no rio Marialva, mas a prospecção fez-se no rio Agualva. O objetivo era a elaboração de um plano de despoluição do rio Marialva, mas o contrato teve por objeto a despoluição do rio do Agualva.

E assim, como com a facilidade que se lhe trocam os nomes, despercebendo o que ambos são (bem ao jeito do radicalismo inerente à igualdade de género), se dá a perceber que Marialva é a denominação do pequeno rio ou ribeiro que, subterraneamente, atravessa a vila e, Agualva é a designação de uma pequena rua ou ruela que aí se estende sobre parte daquele.

Nenhum pecado ou litígio se oferece por a rua ser Agualva e o rio Marialva, a menos que, bem vista a origem toponímica de um e outro, se aclare incestuosa relação, por descendência direta ou comum, que lhe tenha provocado a hodierna crise de identidade, não se podendo ignorar que ele tem uma denominação um tanto ou quanto afeminada, que dita sem artigo facilmente se lhe consegue dizer o género. 

Pode, com efeito, bem lidos os papéis velhos, ser mais adequado defender que ela, apesar de alva como ele, não lhe é mais do que mero reflexo. E que, assim, faz muita diferença perceber que há uma recorrente e incompreensível insistência em adequar a rua ao rio, e não à sua água límpida - talvez porque o tenha deixado de ser - fazendo com que «da» Agualva, como se disse, pelo menos de 1614 a 1974, passasse a «do» Agualva, como expressa a placa aí hoje pregada e; por isso, tal como com ele, também alguns equívocos com ela.

Tudo visto, ainda que à laia de romance, importante é que, por fim, se tratem ambos com a decência que em resultado seja devida a cada um.