«Porém, foi mais o facto de
ter ficado órfão de mãe com apenas dois anos e órfão de pai ao cair dos
dezassete, que ditou a ida de Bernardino António para a Cavada de Rossas. Sua
mãe, Luísa Teresa Angélica de Pinho Brandão, não recuperou do difícil parto de sua irmã Lourença Vitória
e acabou por sucumbir em 4 de Novembro de 1769. Seu pai, Gaspar José Teixeira
Pinto, morreu
a 14 de Setembro de 1783, quando Bernardino António, então com 17 anos, se
preparava para começar novo ano na Faculdade de Leis em Coimbra, que vinha
frequentando.
Um tremendo e definitivo revés no mais dilatado horizonte que vinha
experimentando na Universidade. Um abrupto chamamento da teoria à prática e à
necessidade de mais aceleradas aprendizagens.
Acontecimentos estes que
forçaram o jovem a regressar a Arouca e a assumir as obrigações inerentes à sua
condição de sucessor de seu pai, uma vez que seu irmão Dionísio António,
apenas mais velho um ano, se tinha já destinado ao serviço da Igreja.
Bernardino António pediu
então também a ajuda de seus tios da Cavada de Rossas, onde se juntou a seu
irmão Dionísio António que já ali assistia, no estudo informal de Cânones, que
o haveria de levar a seguir as pisadas de seus primos e tios abades. Com
efeito, era já velha e afamada a tradição de ali se preparar devidamente os
jovens para os ofícios da Igreja ou para a carreira de Armas. De resto, havia
sido em idêntico estágio que seu falecido pai ali se havia enamorado por sua
falecida mãe.
Conjuntamente com seu
irmão, já «clérigo in minoribus», Bernardino
António começou por coadjuvar o tio Vigário Frei Domingos Ferreira Brandão, e,
ao falecimento deste, em 1787, passou a acompanhar seu primo, e sobrinho
daquele, o Vigário Frei Manuel José Ferreira Brandão, que, tendo nascido no
Cortinhal de Santa Maria do Monte, também para ali viera aprender e por ali
ficara a exercer. E com eles também o primo-sobrinho Miguel António,
filho do primo António José Ferreira Brandão, boticário no Porto,
onde nasceu e dali regressou. E também José Luciano,
filho do Capitão-Mor Manuel José Ferreira Brandão de Carvalho,
já feito «clérigo in minoribus». A
Cavada de Rossas era então uma autêntica escola e esse um novo tempo, em que,
apesar de perdida na espessura densa do negrume, não havia noite em que não
ficasse a lucilar a lamparina de azeite no nicho da quina da casa da entrada do
lugar, que os jovens aprendizes acorriam acender depois de, à vez, reboarem o angelus no sino da igreja.
Fruto das aprendizagens
obtidas em Coimbra, Bernardino António, não tardou, assumiu mais protagonismo
que seu irmão Dionísio António, aceitando apadrinhar várias crianças, às quais
cedeu o seu próprio nome, como foi o caso do primo sobrinho de Santa Maria do Monte,
outro em Provesende de Cima, a que assistiu por procuração de seu irmão,
e ainda outro, filho de José Gomes da
Cruz e Maria Soares, do lugar de Bouceguedim de Arouca, assistentes no lugar do
Outeiro de Rossas. Apadrinhou também, entre outros, Caetana, filha
do Capitão Manuel José de Azevedo Rocha e Melo, «rendeiro desta comenda», a que assistiu
por procuração o irmão da baptizada.
Terá sido no âmbito destes ofícios, em que assinou frequentemente com o
apelido Brandão, que Bernardino
António conheceu a jovem Francisca Teresa, que vinha beneficiando da influência
e posses de sua avó Damiana Teresa e seu tio-avô António, assistindo nas casas
mais influentes e privando com os mais destacados oficiais de Rossas.
- Quando
ontem te encontrei na igreja cheguei a cometer, naturalmente, perante Deus, um pecado!
Mas o rei do mundo e do céu deve perdoar-me na hora dos últimos
arrependimentos, atendendo aos sentimentos que a isso me levaram. Estando a
olhar para ti chegava a esquecer-me do acto religioso a que estava assistindo.
Tiveste a bondade de corresponder na rua ao meu sorriso, e é por isso que hoje
te digo, por este meio, que aquela hora de deferência ficará gravada
eternamente em minha alma. Espero a tua resposta, quer me venha a agravar o
sofrimento, filho do receio, quer me venha encher o caminho de flores -
Foi também na Cavada de
Rossas que Bernardino António conheceu melhor e conviveu com um seu parente
mais velho, destacada e reputada personalidade de Rossas e Arouca: o então Capitão-Mor
de Ordenanças dos Privilegiados de Malta, Manuel José Ferreira Brandão de
Carvalho, que havia alguns anos, por 1770, também exercera
as funções de Provedor da Santa Casa da Misericórdia
e, em 1771, as de Juiz Ordinário de Arouca. Um
homem de grande sabedoria e inteligência, filho do não menos renomado Alferes
João Pinho de Carvalho e de Bernarda Ferreira Brandão, prima
de sua mãe e uma das três filhas do Vigário Domingos Ferreira Brandão “o Velho”, e genro do afamado Capitão-Mor
Manuel Aranha Brandão de Mendonça, por
via do casamento com a filha deste, D. Caetana Matilde Soares Aranha Brandão de
Mendonça.
Bernardino António viveu
extasiado com a história e estórias que aí se contavam dos antepassados da casa,
não resistindo sequer a alvorar-se e pendurar-se em tão afamada ascendência, dizendo-se
frequentemente Brandão de Carvalho.
Ao canto da sala da casa, sobradada
mas não forrada, junto à mesa do senhor Capitão, três grandes arcas de
vinhático e pau-santo, do século XVII, acondicionavam pequenas maravilhas e
grandes preciosidades. Documentos nos quais se lia que naquela casa desde
sempre morou gente da mais nobre e influente não só da comenda de Rossas, como
de todo o concelho de Arouca e redondezas. «…pessoas nobres, e de conhecida nobreza, e sempre
se trataraõ com o estado devido as suas pessoas, e calidade, como pessoas
nobres que eraõ, e que com o mesmo estado, e nobreza, se trata elle
supplicante, e da mesma sorte conserva elle supplicante a nobreza, e calidade
de seus progenitores, assim paternos, como maternos, e que nunca nelles ouvera
raça de judeo, mouro, ou mulato, nem de outra infecta naçaõ, nem fama, ou rumor
de contrario…», como se podia ler na cópia da carta de Brasão de
Armas, dada por El-Rei D. João V a José Soares Aranha Brandão. «… peçoas nobres de limpo sangue, sem Raça alguma de
judeos mouro ou molato ou de outra infecta naçaõ, e verdadeiro descendente das
munto nobres famílias, que neste Reyno saõ fidalgos antigos de geraçaõ e de
cotta de Armas, e como tais se trataraõ sempre a ley da nobreza servindoçe com
criados, cavallos e de todo o mais tratamento que a sua nobreza convenha…», como se podia
ler naquela outra carta, dada por El-Rei D. José I a Manuel Aranha Brandão
Soares Henriques de Mendonça.
Ali, onde os gatos se passeavam pelas
traves do telhado e se abafavam na cinza da lareira à pinga dos enchidos ao
fumeiro, residiram sempre os mais destacados oficiais das companhias de
ordenanças dos caseiros privilegiados da Comenda de Rossas da Ordem de Malta.
Sempre! Pelo menos desde o tempo do Comendador Frei Brás
Brandão, que faleceu em Lisboa, em 1656, mas que por ali deixou descendência, nomeadamente Domingos Brandão, ao
qual, após ter mandado construir a nova, «deu as casas velhas que erão da Comenda» e outros
bens e o fez Capitão de Ordenanças, que o foi da Comenda anexa de Frossos, em Albergaria-a-Velha. E de lá também foi Capitão seu
irmão António Brandão, cuja filha retomou a
Cavada de Rossas onde casou com o célebre mercador Manuel
Aranha,
que sucedeu ao sogro na patente e foi Capitão desta comenda. E deste, o seu
filho Capitão Manuel Aranha Brandão, do mesmo lugar, a que sucedeu seu filho Capitão-Mor
José Soares Aranha Brandão, da mesma casa. E o Capitão-Mor Manuel Aranha Brandão Soares Henriques
de Mendonça, do mesmo sítio,
irmão do precedente, que veio a ser sogro do Capitão Manuel
José Ferreira Brandão de Carvalho que dele, para além da filha, recebeu também a
patente.
Mas de todos os papéis,
documentos e livros existentes na casa, incluindo as Memórias da Ordem Militar de S. João de Malta, de frei Lucas de
Santa Catharina, e a novíssima Dissertação
Histórico-Jurídica sobre Direitos e Jurisdição do Grão-Prior do Crato, e do seu
Provisor, de Pascoal José de Mello Freire, a mais bela era mesmo a referida
carta de brasão passada ao Capitão-Mor Manuel Aranha Brandão Soares Henriques
de Mendonça.
Com efeito, os apelidos diziam bem dos merecimentos e o não se ter mandado
fazer pedra d’armas diz bem da humildade e nobreza de carácter do nobilitado. De
resto, havia aquela outra mais antiga, de que ali ficou apenas transcrição,
passada ao seu irmão José Soares Aranha Brandão, mas que
esse levou para o belo e soalheiro solar de Silvares, lá do outro lado da
matriz de Macinhata da Seixa, no Almeu, às portas da vila de Azeméis, de que
foi herdeiro por via materna, e onde entretanto casou e fixou residência, com suas
armas no frontal e capela dedicada a Nossa Senhora da Guia, donde enviou descendência a Bemposta
e devolveu sangue a Frossos.
Foi também na
Cavada de Rossas que Bernardino António aprimorou a arte de manusear armas e
montar a cavalo, o que, aliado ao seu porte e estatura, fez dele um admirável e
respeitável cavaleiro, ao estilo dos antigos cavaleiros das ordens militares –
o que – não lhe corresse nas veias, como
cera p’los brandões, sangue dos cavaleiros ingleses vindos a este Reino com
o Conde D. Henrique - muito o envaidecia e tornava ainda mais empenhado e
dedicado.»
"O ÚLTIMO CAPITÃO de Ordenanças e Milícias de Arouca e a transição do Antigo Regime para o Liberalismo", Arouca, 2019, p. 12 e seguintes.