16 de agosto de 2019

José Nuno Pereira Pinto - o autor, a vida, o homem

José Nuno Pereira Pinto em Alvarenga, 02/08/2019
Em linha de continuidade com alguma tradição existente no nosso concelho em tornar público dados e informações biográficas de personalidades arouquenses, dignas de destaque (pelo percurso singular de vida, pela participação relevante em factos históricos, pela dedicação a causas nobres, pelo altruísmo, pela empatia, pelo percurso profissional ou académico, ou simplesmente pelas relações pessoais criadas), sem a pretensão de uma biografia académica nem exaustiva, partilharei alguns dados e observações sobre arouquenses que, por variadas razões, suscitam o meu apreço e a minha admiração e que julgo ser de interesse local, na medida em que a história de um concelho se cruza com a história da sua população e das suas famílias. 

Em jeito de homenagem, mas sobretudo em manifestação pública do meu apreço, estima e admiração, inicio esta minha pretensão convocando o Dr. José Nuno Pereira Pinto, arouquense, natural da freguesia de Alvarenga, meu conterrâneo.

Julgo sobejamente conhecida a bibliografia do Dr. José Nuno Pereira Pinto, na minha opinião, um dos maiores e mais ilustres autores arouquenses, pelo número, diversidade, rigor e qualidade das cerca de duas dezenas de publicações, nas mais diversas áreas (romance, teatro, poesia, ensaio, diário, crítica literária, historiografia). De facto, enquanto leitora, perscruto no “Da Outra Margem” um autor hábil, um historiador perspicaz e um narrador/ficcionista que nos enreda numa teia sedutora, com personagens, estilos e recursos linguísticos, ambientes e histórias incríveis e únicas tendo como tema principal a extração mineira, o volfrâmio e a II Guerra Mundial em Alvarenga. Depois da mestria revelada neste romance, o autor continua a surpreender com a sua poesia, que sugere uma sensibilidade extrema, numa relação quase transcendental do poeta com a sua terra natal, com a sua família, mas também com a natureza com que se funde desde o raiar do dia ao crepúsculo, em sentimentos profundos, talvez inexplicáveis, de saudade, melancolia, onde a felicidade surge como naturalidade, originalidade, afetividade e inocência.

Se pensarmos que é já o bastante, José Nuno Pereira Pinto revela-se um excelente dramaturgo, recorrendo à tragédia clássica para dar voz à crítica mordaz e acutilante em “Quando a tirania mata pelo silêncio”, contra o Bispo António Ferreira Gomes, que conheceu bem, numa tentativa de honrar a memória do Pe. Coelho da Rocha, que se suicidou, e de desmistificar a imagem do Bispo, repondo alguma verdade àquela figura que, segundo JNPP, é de certa forma inventada e politizada. Esta coragem do autor, muitas vezes incómoda para algumas elites nortenhas e do Porto, repete-se no seu “Diário Imperfeito”, onde revela alguns episódios que vivenciou e que, para um bom entendedor, são esclarecedores do seu carácter e do seu percurso, nunca facilitado, pela Igreja, levando-o mesmo ao descrédito desta enquanto instituição, sem nunca, porém, ver abalada a sua fé. Alvo de algumas críticas foi também a figura do Bispo Dom Domingos de Pinho Brandão, arouquense, do qual JNPP foi discípulo.

José Nuno Pereira Pinto, atualmente nos seus 85 anos de vida, e depois de tantas páginas publicadas em livro, publicou recentemente “Esparsos” de seu pai, José Pereira Pinto, onde acrescenta biografias sobre os filhos deste, num gesto singelo que pretende homenagear o legado de seu pai que lutou para que todos os seus filhos tirassem um curso, que se concretizou e que os fez seguirem as suas pegadas na carreira de ensino, sendo das raras famílias dedicadas à docência (todos os onze filhos de José Pereira Pinto foram professores).

Se a bibliografia de JNPP é impressionante, não o é menos o seu percurso de vida.

Como já foi referido, José Nuno Pereira Pinto é filho de José Pereira Pinto, professor, que foi colocado como titular em Alvarenga em 1926, tendo sido o primeiro professor a estrear a escola do Paço, em 1930. Morou com os seus pais e as suas irmãs nesse estabelecimento até 1945, tendo recordações muito vivas e claras da sua infância, dos serões onde se rezava o terço, onde ouvia seu pai a ler em voz alta Garrett, onde se tocava piano e das manhãs em que acordava pelo dedilhar de guitarra de seu pai. Cresceu no seio de uma família numerosa, zeladora, protetora, rodeado de irmãs, em liberdade plena. Nascido em 1934, tinha 8 anos quando se deu o motim de Alvarenga, tendo memórias muito visuais do motim, da PVDE a cercar a Casa do Santo, que via da janela do seu quarto, de ver o seu pai preso para interrogatório, de se recordar da sua mãe que, na ausência de seu pai, assumia a proteção da família, dormindo com uma espingarda carregada debaixo do travesseiro e do regresso do seu pai a casa, na camioneta que vinha do Porto e que só parava à frente da escola do Paço para deixar entrar ou sair o Sr. Professor, a quem lhe era simpaticamente reservado o banco da frente.

Único filho varão de uma prole de onze que sobreviveram, JNPP viu recaírem em si sonhos académicos que seu pai desejava mas que lhe foram impossíveis e que a sua irmã mais velha, Maria Helena, gorava, ao abandonar a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, após dois anos de frequência, para se casar e emigrar para o Brasil.

Em 1945, José Nuno Pereira Pinto, com onze anos, muda-se com a família para o Porto, pois seu pai é impulsionado pela necessidade de dar continuidade aos estudos dos filhos.

Influenciado pelo contacto com o seu tio cónego, da educação religiosa que tivera e da possibilidade de vir a concluir os seus estudos no Seminário, José Nuno Pereira Pinto decide dedicar a vida ao sacerdócio, vontade que é respeitada e aceite pelos pais. Da sua passagem pelo seminário, JNPP confidencia e partilha o sofrimento que sentia, enclausurado no quarto, sujeito a uma disciplina rígida, quase tirânica, relembrando as disciplinas lecionadas sem espírito crítico nem pedagogia, a recriminação de quaisquer conversas entre pares, normais entre jovens, a hora de recolher obrigatória, os castigos, a ausência de quaisquer meios de comunicação como fossem jornais ou correspondência, o distanciamento imposto relativamente à família e sobretudo a escassa humanidade e solidariedade dos superiores. As memórias mais relevantes que JNPP relembra são de escuridão, proibição, medo, tirania, clausura, opressão e autoritarismo repressivo, memórias essas que contrastavam com as que até então conhecera, em Alvarenga, totalmente opostas.

Sob o jugo da Igreja, quer enquanto seminarista, quer depois, como sacerdote, os seus desejos de tirar uma licenciatura nunca foram considerados nem permitidos pelo Bispo Dom António Ferreira Gomes, o que fez com que JNPP se sentisse marginalizado, secundarizado e ostracizado, factos que talvez também o tenham levado à rutura e o tenham levado a pedir dispensa de votos. Apesar da rejeição do Bispo, JNPP matriculou-se em Coimbra, licenciou-se e depois de abandonar o sacerdócio concluiu várias outras licenciaturas, sendo diplomado em Teologia, Filologia Clássica, Direito e Pedagogia.

O abandono do sacerdócio foi outra prova pela qual JNPP teve de passar, juntamente com a sua família que aceitou e respeitou a sua decisão. JNPP recorda que sentiu o estigma, que socialmente deixou de ser considerado, que houve “amigos” que lhe viraram as costas, o que o obrigou a recomeçar e a redobrar as suas forças, revigoradas com a possibilidade de ser professor. Apesar de inicialmente pensarem que seria professor de Educação Moral, JNPP inicia a sua carreira de docente orgulhosamente a lecionar português, latim e grego (e a demarcar-se orgulhosamente da etiqueta de ex-sacerdote)…

Já professor e liberto dos votos enquanto padre, conheceu a mulher que havia de desposar, Natividade, também ela professora e mais tarde poetisa. Com ela teve um filho, a quem deu o nome de Nuno.

Nestas cinco décadas, JNPP teve uma vida repleta, instalando-se em Matosinhos. Foi professor, tirou várias licenciaturas (não tantas como queria, pois lamenta não ter tido tempo para tirar Medicina nem ter tirado Música), exerce advocacia com seu filho, e publicou obras de relevo para a História Local e Nacional.

José Nuno Pereira Pinto, como se pode facilmente constatar, é um homem notável, de uma enorme erudição, com conhecimentos diversificados muito acima da média, amante das artes, da música clássica e da ópera, exímio pianista (há poucos dias brindou-me a mim e à Cátia Cardoso com um concerto particular, em Alvarenga, onde sentado ao piano tocou alguns dos seus improvisos que compôs), detentor de uma memória visual incrível, capaz de relembrar factos, situá-los em tempo e local precisos (!), muito humano e sensível, altruísta, orgulhoso da sua terra e defensor do seu património (mostra-se incrédulo que ainda ninguém tenha publicado a monografia do concelho de Arouca de Manuel Rodrigues Simões Júnior!), impulsionador da Cultura e do Conhecimento, de uma perspicácia aguda, associando a memória do passado, à atualidade ao mesmo tempo que projeta o futuro, com esperança e positivismo.

Por vezes desconhecido ou nem sempre compreendido, José Nuno Pereira Pinto é de facto uma figura ímpar, que prima pela retidão, pela honestidade intelectual, pela verdade por vezes difícil de digerir e inoportuna, pelo qual nutro estima e admiração e a quem agradeço a amizade, o apreço e a partilha do seu conhecimento e da sua vida, registada em livros, ao alcance dos leitores!