Máquina de projetar do antigo cinema. |
Apesar de estar ainda
um escuro pálido e não aquele escuro de breu onde tudo se pode esconder, deixou
deslizar a mão como se fosse uma folha perdida a esvoaçar no vento, e
calmamente segurou na mão dela pela primeira vez. Quando sentiu que ela
concordava com aquele mimo, a primeira carícia trocada, não se lembra do nome
do filme, mas lembra-se que foi ali o primeiro passo para um amor que dura até
hoje. Se há recordações muito boas, os tempos passados no velho cinema do
Valdemar são um conjunto delas. A minha geração e as que andam por lá próximo,
sempre que lhes passa pela memória o velho cinema, sorriem e são invadidos por
uma emoção que é mais fácil sentir que descrever. Situado ali para os lados do
museu municipal existia um velho barracão que em boa hora o Sr. Valdemar que
tinha um café na avenida e mais tarde uma papelaria e gráfica, transformou numa
sala de cinema. Finalmente a 7ª arte em Arouca. As obras não foram muitas, um
chão de cimento, umas luzes aqui e ali, um estrado para inclinar o piso, cadeiras
individuais e cadeiras coletivas com costas de inclinar, e de madeira colorida
para distinguir. Uma sala pequena onde se colocou a máquina de projetar e logo à entrada um balcão onde se podiam adquirir rebuçados, café, laranjadas e
semelhantes para distrair no intervalo. E construiu assim um lugar que não
trocávamos por nada, um lugar mágico onde cada um se vestiu de muitas figuras e
viveu muitas vidas, sempre com muitas aventuras e finais felizes. Aí
apercebi-me que nem todos eram iguais, os que tinham alguma coisa compravam os
lugares mais afastados do ecrã, e os que viviam com mais dificuldades se
queriam aqueles momentos de encanto ficavam bem à frente, podia ser que o sonho
se aproximasse com mais facilidade. Aí apercebi-me também que o amor originava
ruídos e sons, palmas e pés no chão, bastava um simples beijo dos “artistas” e
era uma barulheira da frente para trás. O escuro incentivava as manifestações.
Aí apercebi-me também que quase todos defendiam o bem contra o mal e os bons, o
”artista”, contra os maus e quando ele triunfava os aplausos eram acompanhados
de gritos de euforia como se isso transformasse o escuro dos dias de então, e o
dia seguinte nascesse com mais que um sol. Um cinema sem casa de banho e aí nos
intervalos, nas traseiras, os homens formavam lado a lado e de costas pareciam
prontos a enfrentar um pelotão de fuzilamento. Mulheres muito poucas, onde se
sentavam esperavam aí pelo final, uns casais de namorados e a maioria uma
plateia masculina. Aprendemos todos
muita história do Mundo e das
civilizações, o que muito nos ajudou nas brincadeiras e nos estudos. Andamos e
lutamos, uns dias por Roma, outros contra Roma, fomos exploradores em África,
atravessamos o mar de descoberta em descoberta, choramos com canções de uma
tristeza infinita antes que o amor triunfasse mais uma vez, descobrimos o
Far-West, fomos pistoleiros e Indios, muitos tiros se dispararam naquela sala... Detetives nas
ruelas de Paris ou nos portos do oriente, espadachins por muitos mares e
tivemos o mundo nos nossos braços. Aí
apercebi-me que o mundo é imenso e muito belo e está sempre a descobrir-se e
renovar-se, afinal não era a preto e branco. Aí apercebi-me que não há idades
para sonhar, nem para partilhar bons momentos com as amizades, seja para guardar
memórias, infantis ou já de idade. Do cinema do Sr. Valdemar nada resta, nem
uma pedra, nem o sitio se descobre com facilidade, mas as lembranças são
imensas e o sentido de dívida pelos momentos maravilhosos que por lá passamos,
hão de perdurar porque não os vamos deixar esquecer. Hoje Arouca até tem um
festival de cinema com prestígio e muita dedicação do Rita e da Cátia o que nos
coloca também em dívida para com eles, porque quando as luzes se apagam
entramos num mundo transformado, cada um à sua maneira acompanha o rasto de
luz e sabemos que quase sempre tudo
acaba em instantes de felicidade. Viva o cinema. Obrigado Sr. Valdemar.
Nota final. Obrigado aos amigos que me contaram o inicio
deste texto. Nasceu mesmo uma história que leva já muitos anos. Parabéns aos dois...