21 de maio de 2019

A Pensar Alto. O cinema do Valdemar.

Máquina de projetar do antigo cinema.
Apesar de estar ainda um escuro pálido e não aquele escuro de breu onde tudo se pode esconder, deixou deslizar a mão como se fosse uma folha perdida a esvoaçar no vento, e calmamente segurou na mão dela pela primeira vez. Quando sentiu que ela concordava com aquele mimo, a primeira carícia trocada, não se lembra do nome do filme, mas lembra-se que foi ali o primeiro passo para um amor que dura até hoje. Se há recordações muito boas, os tempos passados no velho cinema do Valdemar são um conjunto delas. A minha geração e as que andam por lá próximo, sempre que lhes passa pela memória o velho cinema, sorriem e são invadidos por uma emoção que é mais fácil sentir que descrever. Situado ali para os lados do museu municipal existia um velho barracão que em boa hora o Sr. Valdemar que tinha um café na avenida e mais tarde uma papelaria e gráfica, transformou numa sala de cinema. Finalmente a 7ª arte em Arouca. As obras não foram muitas, um chão de cimento, umas luzes aqui e ali, um estrado para inclinar o piso, cadeiras individuais e cadeiras coletivas com costas de inclinar, e de madeira colorida para distinguir. Uma sala pequena onde se colocou a máquina de projetar e logo à entrada um balcão onde se podiam adquirir rebuçados, café, laranjadas e semelhantes para distrair no intervalo. E construiu assim um lugar que não trocávamos por nada, um lugar mágico onde cada um se vestiu de muitas figuras e viveu muitas vidas, sempre com muitas aventuras e finais felizes. Aí apercebi-me que nem todos eram iguais, os que tinham alguma coisa compravam os lugares mais afastados do ecrã, e os que viviam com mais dificuldades se queriam aqueles momentos de encanto ficavam bem à frente, podia ser que o sonho se aproximasse com mais facilidade. Aí apercebi-me também que o amor originava ruídos e sons, palmas e pés no chão, bastava um simples beijo dos “artistas” e era uma barulheira da frente para trás. O escuro incentivava as manifestações. Aí apercebi-me também que quase todos defendiam o bem contra o mal e os bons, o ”artista”, contra os maus e quando ele triunfava os aplausos eram acompanhados de gritos de euforia como se isso transformasse o escuro dos dias de então, e o dia seguinte nascesse com mais que um sol. Um cinema sem casa de banho e aí nos intervalos, nas traseiras, os homens formavam lado a lado e de costas pareciam prontos a enfrentar um pelotão de fuzilamento. Mulheres muito poucas, onde se sentavam esperavam aí pelo final, uns casais de namorados e a maioria uma plateia masculina. Aprendemos todos  muita  história do Mundo e das civilizações, o que muito nos ajudou nas brincadeiras e nos estudos. Andamos e lutamos, uns dias por Roma, outros contra Roma, fomos exploradores em África, atravessamos o mar de descoberta em descoberta, choramos com canções de uma tristeza infinita antes que o amor triunfasse mais uma vez, descobrimos o Far-West, fomos pistoleiros e Indios, muitos tiros se dispararam naquela sala... Detetives nas ruelas de Paris ou nos portos do oriente, espadachins por muitos mares e tivemos  o mundo nos nossos braços. Aí apercebi-me que o mundo é imenso e muito belo e está sempre a descobrir-se e renovar-se, afinal não era a preto e branco. Aí apercebi-me que não há idades para sonhar, nem para partilhar bons momentos com as amizades, seja para guardar memórias, infantis ou já de idade. Do cinema do Sr. Valdemar nada resta, nem uma pedra, nem o sitio se descobre com facilidade, mas as lembranças são imensas e o sentido de dívida pelos momentos maravilhosos que por lá passamos, hão de perdurar porque não os vamos deixar esquecer. Hoje Arouca até tem um festival de cinema com prestígio e muita dedicação do Rita e da Cátia o que nos coloca também em dívida para com eles, porque quando as luzes se apagam entramos num mundo transformado, cada um à sua maneira acompanha o rasto de luz  e sabemos que quase sempre tudo acaba em instantes de felicidade. Viva o cinema. Obrigado Sr. Valdemar.

Nota final. Obrigado aos amigos que me contaram o inicio deste texto. Nasceu mesmo uma história que leva já muitos anos. Parabéns aos dois...