27 de outubro de 2019

O Prémio Nobel da Medicina e as suas memórias de Rossas

No dia em que passam precisamente setenta anos sobre a atribuição do Prémio Nobel da Medicina a António Caetano de Abreu Freire de Resende Egas Moniz, cuja história e biografia é sobejamente conhecida, recordamos aqui algumas passagens das suas memórias, a título de Confidências de um Investigador Científico, que fez publicar precisamente no ano daquela distinção (1949) e se reportam à Casa do Outeiro, na freguesia de Rossas, que lhe pertenceu por alguns anos, depois de ali passar largas temporadas de férias desde a meninice na companhia de seu tio Augusto.

Antes, ainda também as mais conhecidas passagens de A Nossa Casa, que deu à estampa em 1950, no ano seguinte ao do reconhecimento com o Prémio Nobel:

«O horizonte em Rossas é limitado pelas serranias que, de todos os lados da rosa-dos-ventos, se levantam, com aspectos diferençados. Ali o sol nasce tarde por ter de galgar os montes levantinos e cedo se oculta por detrás das elevações do poente. As casas raras vezes se aglomeram, dispersam-se pelos campos na tranquilidade da vegetação verdejante que as abundantes águas das montanhas mantêm por todo o Verão. Só no adiantado do Outono, os milhos de altas e finas, de boa palha para o gado e de espigas de reduzido volume, conseguem amarelecer.
Às tardes ia meu tio até à única loja com mercearia, panos e utilidades, que havia na aldeia. Pequeno estabelecimento que ainda existe, e ficava num pequeno largo no sítio chamado da Barroca, onde passa a estrada que segue para a vila e outra que vai para o Porto, com um cruzeiro em granito ao lado. Ali se chegava de casa de meu tio por uma pequena vereda de grandes lajedos entre os quais corria muitas vezes água abundante».
(Foto: Joshua Benoliel, 1907, Arquivo Municipal de Lisboa)
O quanto Rossas e a Casa do Outeiro marcaram Egas Moniz nem ele próprio o conseguirá explicar, mas, o certo é que num dos episódios mais aflitivos e marcantes da sua vida foram os sonhos e as memórias do pequeno recanto do quintal do Outeiro que o reconfortaram.

A 14 de Março de 1939, um rapaz, pelos seus 25 anos, engenheiro-agrónomo, no propósito aparente de matar Egas Moniz, entrou no seu consultório e desferiu-lhe quatro tiros. Conhecido como era no meio arouquense, onde contava vários amigos, o acontecimento foi também noticiado no semanário Defesa de Arouca dessa semana.

«Três balas chegaram a palpar-se sob a pele e foram facilmente extraídas. Outra ficou encravada numa vértebra, onde permanece. Um acidente pleural, devido ao traumatismo, casou preocupação aos meus médicos e trouxe-me horas amargas», confidenciou.

Durante a convalescença, entre a esperança trazida pela luz da manhã e o desânimo despertado pela sede que o torturava e nas dores que o afligiam, Egas Moniz viu-se reconfortado por representações oníricas dum remoto passado: 

«Não sei que luta se passou no meu íntimo durante os primeiros dias. Não receava a morte, mas, olhando em redor, entristecia-me ter de abandonar a vida daquela maneira, perder, para sempre, o contacto com os que tanto me queriam.
Apesar disso, contradição das incertezas que se atropelavam no meu cérebro, também não desejava viver. Sofria muito. Ignorava as condições em que ficaria; se conseguiria continuar a trabalhar como até então. Poderia ainda ocupar-me de coisas científicas, dos meus trabalhos e até da edição alemã que trazíamos entre mãos?
Diante dos meus olhos tudo passava em filme rápido, com movimentações mais dramáticas do que agradáveis.
Logo que dormitava, sentia-me transportado a um pequeno recanto de quintal que tivera em Rossas, Arouca, onde a água da serra caía cantando num pequeno tanque de granito com bicas de descarga. Havia mais de 50 anos que poucas vezes me lembrara da pequena paisagem escondida sob uma latada, onde se viam uvas ainda mal maduras. A representação cénica era perfeita. E a água fresca feria na pedra canções silvestres, que não perturbavam a quietação do pitoresco quadro, entre campos verdejantes, em que os milheirais abundavam, e onde os «enforcados», emoldurando pequenos eidos, deixavam cair grinaldas de cachos, que principiavam a tingir.
Acordava e logo desaparecia aquela representação onírica dum remoto passado; mas mal assomava uma sonolência, ligeira que fosse, imediatamente me transportava às longínquas paragens arouquesas, onde a água fria cantante me deliciava numa bucólica toada.
Estava sequioso. Mitigavam-me a secura da boca com pequenas gotas de água fria; mas a sede continuava e a penosa sensação, projectando-se no cérebro, ia despertar uma antiga reminiscência da infância. E não me afigurava a beber a água fresca e sadia da serra; contentava-me com a visão do repousante cenário e com a música do murmúrio da fonte.
E perguntava a mim próprio o motivo desta fixação na paisagem do pequeno recanto junto ao qual brinquei com meus irmãos há mais de sessenta anos e que já vai para meio século me não pertence!»

Egas Moniz, afastado destas paragens por força dos estudos, docência e política, e depois de alguns anos sem aqui conseguir regressar, desfez-se da Casa do Outeiro por volta de 1907, ano da foto acima.