4 de novembro de 2020

Outono, bálsamo para a alma

Entardecer. Hora a que o dia se finda, fazendo descer sobre os mortais aquela doce e branda melancolia que torna mais vívidas as memórias e a saudade.

A vassoura vai-se arrastando penosamente pelo pátio, tentando libertá-lo do manto de folhas que o vento impiedoso ali derramou, e que se aconchegam em montículos, como se quisessem proteger-se do destino que lhes tracei.

Ali mesmo ao lado, no quintal da vizinha, vigoroso, imponente, um velho castanheiro olha-me sorridente, com ar trocista, até, a querer alertar-me para a inexorável circunstância de, dali a breves instantes, as suas folhas, que parecem em queda perpétua, voltarem a atapetar-me o pátio. Mais uma e outra vez. Sempre. Até ao fim da estação. Nem sei porque insisto.

A majestosa árvore, a espreguiçar-se ao embalo do vento, derramando cores quentes e efeitos de luz na placidez da tarde, como me faz lembrar um outro castanheiro que povoou a minha meninice de horas felizes e tranquilas, quando a inocência e a ingenuidade preenchiam os meus sonhos!... O meu velho castanheiro! O meu amigo de outros tempos, à sombra do qual teci mil devaneios de menina, embalando bonecas ou baloiçando-me segura nos seus braços.

Por que razão me acometem lembranças tiradas do baú poeirento onde as tinha guardado tão ciosamente? Será da hora, propícia ao sonho que se solta do peito para se desfazer em nuvens de nostalgia?

Sim, talvez. Mas não só. Pelas narinas entram-me os fortes odores da estação. São os tomateiros, em plena produção, desprendendo os seus eflúvios, que se misturam com os dos limões, ternos e reconfortantes. É o doce das maçãs que se eleva da mãe árvore sempre pronta a presentear-me com o fruto da sua dedicada labuta. São os perfumes inconfundíveis do alecrim e da hortelã, aromatizando o ar que se impregna de intensa frescura.

Nas asas do vento, chega o odor apelativo de uvas maduras das vinhas semeadas pela encosta. No céu, as nuvens enovelam-se e apressam-se, como se quisessem abrigar-se da noite que não tarda a tingir céu e terra de treva. Vá-se lá saber porquê, fazem-me lembrar as vagas agitadas do mar da minha infância. Sinto-lhe a maresia à mistura com os cheiros da montanha.

Os meus pulmões absorvem com sofreguidão e sentem-se reconfortados. A minha alma embebe-se de bálsamos que a elevam a um paraíso que é só dela, deixando-a absorta e desligada de um presente que se escapa a cada segundo e, por momentos, regressa a um passado muito seu.

Hora de reviver o que é tão nosso. Hora em que o dia se esvai de si mesmo e nos deixa um pouco mais sós, resguardados na intimidade do que se foi mas está ainda presente. Tão presente. Sempre. Quanto mais se envelhece, mais presente se torna.

E a vassoura que teima em fazer o seu trabalho. Coitada! Quase se arrasta sozinha, os fios que a moviam estão tão ténues, deixou de ser comandada por mim. Trabalho árduo, o dela.

Eu… eu estou longe, lá atrás, num tempo que regressou trazido pelo vento e pelos odores outonais. Subo nos ares, perdida de riso, com os cabelos ao vento, que empurra o baloiço construído pelo meu pai, feito de canas e corda velha. Pendurado no meu querido castanheiro que, forte, duro, seguro, resiste ao tempo e às minhas lembranças. O meu pai, indiferente ao tempo que passou por ele e por mim, preso entre os limites da memória, continua a talhar cada pedaço de chão do quintal com o infinito amor e dedicação com que o recordo. Agora é ele quem dirige a vassoura, enquanto eu levanto voo no meu baloiço.

O velho castanheiro da vizinha continua a fazer troça de mim. Acena-me com os seus ramos quase despidos. “Cá te espero com a manta de folhas que voltarei a estender para ti, para cobrir-te de ternura”.

Volto ao presente. O meu pai desapareceu do meu raio de visão. Mas continua lá, sorrindo, sei que sim. A vassoura, incansável, desliza por entre as folhas que se espreguiçam no pátio, obrigando-as a acordar, presas nos seus dedos.

O pátio vai-se despindo do xaile de folhas. Por enquanto. Eu vou-me vestindo de saudade. É tão bom sentir saudade!