23 de novembro de 2019

Sobre a arca tumular da igreja de Urrô

Tal como outros elementos, objectos e peças do nosso património, também a arca tumular colocada junto à porta lateral da igreja matriz de São Miguel de Urrô, de granito de traço simples mas rara no seu género por estas bandas, faz parte do imaginário colectivo e individual de muitas pessoas, nomeadamente, locais. No caso concreto, pelas várias sugestões que se fazem sobre quem alegadamente ali se encontra tumulado, e que vão desde um nobre cavaleiro ou nobilitado local a um célebre cónego ou afamado clérigo. Pois, “muito frio”, como se diz nos jogos de adivinhação.


Eu próprio, que por ali passei vários dias da minha infância, ouvi muitas dessas sugestões, nomeadamente a de que se trataria de um velho padre. Porém, de tão pouco conclusivas que me pareciam, apenas aguçavam ainda mais a minha curiosidade, que, mais tarde ou mais cedo, haveria de satisfazer. E já lá vão uns bons anos desde que, por acaso, a esclareci, ainda os paroquiais se tinham de compulsar no Arquivo Distrital de Aveiro.

Há uns dias, estando a escrever mais umas linhas sobre a vizinha comenda da Ordem de Cristo de Várzea e, por força disso, tendo-me deslocado ao lugar e freguesia de Urrô, fui mais uma vez presenteado, ainda que muito simpaticamente, com uma elaborada sugestão sobre quem, alegadamente, se encontraria sepultado na arca tumular da igreja. Apercebi-me então que as estórias do imaginário popular de tradição se mantinham ainda por esclarecer, sendo ainda hoje alimentadas com entusiasmo e uma impressionante quase certeza.

Por breves minutos pensei não questionar nem desfazer aquele imaginário. Quem se dedica a estas coisas, cedo se apercebe que desfazer imaginários ou esclarecer a história não é simpático aos ouvidos de quem gosta ou tem interesse em laborar sobre estórias, sugestões do imaginário popular ou versões convenientes. Não vale a pena, é assim. E, por isso, é sempre mais aconselhável escrever, não fazer muito alarido e deixar que os escritos façam o seu caminho, ainda que solitário e paralelo ao imaginário... Mas, por sorte, no caso em apreço até foi muito proveitoso para o meu interlocutor desfazer-lhe o equívoco. Vale, pois, a excepção.

Na verdade, como é sabido, ainda que por poucas pessoas, especialmente pelos familiares, na arca colocada junto à porta lateral da igreja matriz de São Miguel de Urrô, não se encontra ou não se tumulou nenhum nobre cavaleiro ou nobilitado local e, muito menos algum célebre cónego ou afamado clérigo. Nem sequer mesmo um homem!

A arca também não é tão antiga como se julga e diz, nem é um monumento ou homenagem pública do concelho, da freguesia, da paróquia ou qualquer agremiação, a quem quer que seja. É, simplesmente, mas muito significativamente, no entanto, um monumento e homenagem a uma mãe feita por seus amados filhos e herdeiros. São, com efeito, os restos mortais de uma mulher que ali se encontram, naquela arca mandada fazer especificamente para ela.

Trata-se de Guiomar Carolina de Sousa Brandão, filha de Dâmaso de Sousa Brandão e Marcelina Cândida da Mota, da Casa da Vinha do Souto de Baixo, da freguesia de Várzea, onde nasceu em 5 de Fevereiro de 1804. Sobrinha paterna, claro está, de Dom Leonardo de Sousa Brandão, último bispo da extinta Diocese de Pinhel, o qual, por sua vez, teve na sua freguesia natal um sepultamento muito menos digno. De resto, é mesmo uma falta muito grave não se ter ainda aí assinalado e feito notar convenientemente esse facto, de relevante interesse para a história da freguesia e paróquia de Várzea. Mas isso são contas doutro rosário.

Guiomar Carolina de Sousa Brandão, casou então (em 14 de Janeiro de 1839) com José Manuel de Pinho, filho de Manuel José de Pinho e Ana da Rocha Campos, “da Casa dos Ciprianos”, do lugar e freguesia de Urrô, onde residiram e tiveram descendência, mas acabou por sobreviver a seu marido por quase vinte anos. Quando esta faleceu, em 28 de Julho de 1887, andava acesa a controvérsia da proibição dos sepultamentos no interior das igrejas e não havia ainda cemitério paroquial na freguesia, pelo que, em face da incerteza do local para sepultamento de sua amada mãe, os filhos da abastada Guiomar Carolina, querendo garantir-lhe o verdadeiro e merecido descanso eterno, tomaram a decisão de mandar fazer uma arca em granito para a sepultar.

Assim se pode ler no respectivo assento de óbito: «Aos vinte e oito dias do mez de julho de mil oitocentos e oitenta e sete, no logar de Urrô, concelho d’Arouca, Bispado do Porto, faleceu tendo apenas recebido o sacramento da penitência e extrema-unção (esta já com duvidas) um individuo do sexo feminino, por nome Guiomar Carolina de Souza Brandão, viúva que ficou de José Manoel de Pinho, proprietária, de idade de oitenta anos, pouco mais ou menos, natural da freguesia de Sam Salvador de Varzea d’este concelho e Diocese, mas moradora já desde há muitos anos n’esta freguesia onde veio casar, onde era parochiana e moradora, filha legitima de Damaso de Souza Brandão, da dita freguesia de Várzea, e de D. Marcelina Cândida da Motta Brandão, natural da freguesia de Canedo, concelho da Feira, d’este Bispado do Porto, proprietários. Fez testamento, deixou filhos e foi sepultada em um tumulo feito pelos seus herdeiros feito no adro da igreja por não haver cemitério definitivo. Para constar mandei lavrar em duplicado este assento que assigno. Era ut supra. O Abbade – António Teixeira da Silva.»