2 de outubro de 2021

A vingança e defesa das gentes de Arouca

Na introdução ao meu trabalho "O Último Capitão de Ordenanças e Milícias de Arouca", refiro que: «a história das Invasões Napoleónicas e/ou das Lutas Liberais está mais do que estudada e sistematizada. E a transição do Antigo Regime para o Liberalismo também. No entanto, como se verificará, não estão estudados muitos dos factos e acontecimentos locais de Arouca nem evidenciados alguns dos seus protagonistas, que se relacionam com essa história. É verdade que sem relevância para a história nacional, mas com muita importância para a nossa história local.»

Um desses factos e acontecimentos, que não abordo na versão preliminar daquele estudo, mas que aqui conto por aditamento, é o que se retira de um assento de óbito lavrado nos livros da paróquia de São Bartolomeu de Arouca, que transcrevo integralmente: «Aos trinta do mês de Março do anno de mil oito centos e nove, prezo pelo povo, e depois confefsado e excommungado hum homem que unanimemente se dizia ser o Capitão mor José d'Oliveira Camossa da Terra da Feira, foi pelo mesmo povo afsafsinado por dizerem que era traidor à Pátria, e para que a todo o tempo constafse fiz este afsento. Foi enterrado no adro desta Igreja aos trinta e hum do mesmo. Era ut supra. O Pároco José Vicente Carneiro de Vasconcelos Nobre.»

Este inusitado e surpreendente acontecimento assume ainda maior relevo se o contextualizarmos e percebermos o que levou a população de Arouca a fazer justiça pelas próprias mãos, sob a grave acusação de traição à Pátria. O contexto é o das Invasões Napoleónicas, mais especificamente o da Segunda Invasão, liderada pelo marechal Soult, que virá a ocasionar o célebre desastre da Ponte das Barcas, que unia as margens do Porto e Vila Nova de Gaia, ocorrido em 29 de Março de 1809, levando à morte por cruel afogamento de mais de quatro mil pessoas, militares e civis. 

Nesse dia, para sempre recordado como de perpetuo luto e horror, encontrava-se na cidade do Porto, entre muitos outros militares e civis, inclusive de Arouca, José de Oliveira Camossa, comandando as milícias e ordenanças de Oliveira de Azeméis, quando, inesperadamente, ali entraram as forças comandadas pelo marechal Soult, desencadeando o alvoroço que, para além doutras atrocidades, viria a provocar aquela tragédia. Facto a que não foi alheia a retirada atabalhoada e cobarde de muitas milícias e ordenanças, entre as quais as comandadas por Camossa, que se retirou pela margem esquerda do rio, deixando que os seus homens fugissem em debandada para suas casas.

Camossa só terá olhado para trás já na descida da Farrapa para o vale de Arouca, para onde fugiu e chegou no dia seguinte, com o fito de se alojar em casa de um individuo que reputava seu amigo, mas que, percebendo o sucedido, logo o denunciou como traidor ao povo revoltado e solidário com os seus filhos e conterrâneos ainda por parte incerta, quem sabe a sucumbir nas águas do Douro, pelo que foi imediata e impiedosamente assassinado.

João de Oliveira Camossa, para além de capitão-mor de Oliveira de Azeméis, que em seu favor se separou da capitania-mor da Feira, era Fidalgo da Casa Real e Cavaleiro da Ordem de Cristo, e avô materno de Manuel Baptista Camossa Nunes Saldanha, natural da Casa da Terça, de Mansores, que veio a ser, entre outros cargos, presidente da Câmara e Administrador do Concelho de Arouca durante vários anos, agraciado com título de Visconde de Albergaria de Souto Redondo pelo rei D. Carlos I.

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As milícias e ordenanças de Arouca ter-se-ão esforçado e demorado um pouco mais, mas não sem sofrer as consequências desse esforço. Com efeito, ficaram acometidos de consideráveis incapacidades os próprios capitão-mor Manuel José de Almeida Ferraz Bravo e sargento-mor José de Bessa Brandão, a tal ponto de, para se estabelecer a rápida defesa de Arouca, sempre cobiçada pelas riquezas do seu Mosteiro, mas agora também exposta a represálias, logo a 5 de Abril se tivesse ordenado a António Gomes do Vale Quaresma, capitão de uma das companhias locais, que daí em diante lhe fosse tudo responsável, visto que os lideres atuais, pelas suas moléstias, não se encontravam mais em estado de bem servir.

Poucos dias depois, ordena-se também ao capitão da companhia de Malta, Manuel Joaquim de Sousa Brandão, que, com oito homens de espingardas ou dez com um cabo, sigam para a ponte de Telhe e aí coloquem uma barreira que possa abrir e fechar sempre que necessário, com a promessa de serem rendidos de vinte e quatro em vinte quatro horas.

A 19 de Abril, o brigadeiro inglês Robert Wilson é encarregado de comandar a vanguarda do exército português e, nomeadamente, vigiar os caminhos que passam por Arouca em direção ao Porto e Entre-os-Rios, dispondo de três batalhões de caçadores, com duas companhias do regimento britânico, formando tudo uma brigada ligeira. As suas avançadas colocaram-se na Farrapa, ponto vantajosamente situado na cumeada divisória entre as águas do Douro e do Vouga, a meia distância entre Arouca e Oliveira de Azeméis, e donde era fácil comunicar pela sua esquerda com as tropas do coronel Trant, que vigiava a linha do Vouga.

No dia 28 de Abril, Wilson encarrega o major Luís Paulino Pinto da França «...da defesa da vila de Arouca e sua linha, de reconhecer e proteger todos os caminhos e avenidas para a dita vila e desta e das estradas de Lamego para o Porto, e pela vizinhança da margem do Douro e, finalmente, de fazer o que for conveniente para o bem do serviço e operações militares deste exército, para o que as ordenanças, autoridades militares e civis lhe prestarão os devidos e requeridos serviços. De todas as suas operações deve a dita vila esperar a sua segurança, que eu apoiarei e socorrerei com a competente tropa quando seja necessário e recomendo àqueles povos que, com fidelidade ao seu Soberano e amor à sua independência resistam, como honrados portugueses ao jugo de um tirano e ao ultraje da sua religião.»

Por sua vez, estando já as forças inimigas muito próximas dos limites do concelho e devidamente posicionadas, a certa altura Soult manda avançar um contingente sobre Arouca, quiçá para vingar alguma morte de que lhes chegara notícia ou para, muito simplesmente, saquear o Mosteiro e obter não só objetos de valor mas também víveres para os seus homens e animais. Porém, o major Pinto da França aguardava-os já nas gargantas e trincheiras da Farrapa, onde os enfrentou com grande coragem, obrigando-os a retroceder para trás da defesa organizada desde os pendores de Rossas até à ponte do Carvalhal, onde as tropas francesas, durante nove dias, tentaram a incursão em Arouca, mas sem nunca conseguirem avançar, até que, por fim, desmoralizadas, acabaram por desistir.

A Segunda Invasão Napoleónica teve o seu fim após a Segunda Batalha do Porto, travada a 12 de Maio de 1809, que ditou a retirada das tropas francesas do Norte de Portugal.