16 de agosto de 2020

NUMA CURVA DA ESTRADA… AROUCA

Nuvens de nevoeiro vão subindo em espiral, serpenteando por entre as árvores semeadas pela encosta. Parecem novelos de algodão cinzento a envolver a vegetação, conferindo-lhe um aspeto algo fantasmagórico. 

A montanha, no virar de cada curva, surge recortada no horizonte, com o céu e a terra a tocar-se, numa tangente em que os limites de cada um se confundem. Projeto o olhar em frente, momentaneamente, sem perder de vista o ato de conduzir, que requer absoluta concentração. Mesmo assim, não posso deixar de apreciar a imponência e altivez do dorso serrano que se deleita, longínquo e simultaneamente tão próximo, desafiador e misterioso.

Vou avançando, ao sabor de cada meandro da estrada, com a Freita, ao longe, a despontar por entre o muro de neblina matinal, que escala a encosta, vinda do rio Paiva, adormecido aos meus pés. 

Mas, de súbito, numa volta da estrada, é o Montemuro que me espreita, ora lateralmente, ora na faixa frontal, como uma onda verdejante por entre a espuma branca da névoa que tardiamente se desfaz. 

É assim a estrada que liga Alvarenga, freguesia em que resido, há quase vinte anos, e a vila de Arouca, vale encantado, encaixado entre as duas elevações que, quais vigilantes atentos, por ela velam incansáveis.

Por mais que este percurso faça parte da minha rotina quase diária, não consigo evitar ser assaltada por emoções intensas quando percorro esta estrada. É o meu cantinho do mundo, o lugar a que pertenço, mesmo sem ter nascido no concelho. Faz parte de mim. Quando me afasto, um pedaço de mim fica por cá; um pedaço deste local vai comigo, onde quer que eu vá. 

A estrada lá vai deslizando sob os pneus do meu carro, que avança pelo asfalto, ora firme, ora a medo, que ali mesmo ao lado, os declives precipitam-se como abismos, em direção ao Paiva. 

E num ápice, como saída de um conto de fadas, ao virar de uma curva… Arouca! Lá está ela, a despertar timidamente, com as suas casinhas semeadas pela encosta das colinas verdes e doiradas, aglomerados de vida simples e doce, bucólica mas prenhe de labor, fazendo lembrar as cascatas que encantavam a minha infância. 

Vou-me aproximando. À minha direita, um desvio que, sem dúvida, encurta o percurso, mas que raramente utilizo. Prefiro adentrar-me, devagarinho na vila, saborear o bulício de quem inicia os afazeres do dia, sentir a vila a murmurejar, que é como o pulsar do sangue nas veias, as batidas da alma das gentes. 

À minha esquerda, em toda a sua majestade, o Mosteiro de Arouca, morada da padroeira de Arouca, a Rainha Santa Mafalda, sorri a quem passa. É o centro da vila, o coração histórico de uma povoação que cresceu e se desenvolveu orgulhosamente à sua sombra. Um foco turístico, certamente, mas também, e acima de tudo, um farol a iluminar as gentes arouquenses. A identidade de uma terra que se preza da sua herança, enraizada no passado e projetada no futuro.

À minha direita, a Praça, deliciosamente talhada em volta do garboso fontenário, rodeada de história e pulsante de vida, lugar de reflexão e descanso. 

Em qualquer cantinho, os canteiros floridos, singelos, bem tratados, a embelezar com as suas cores e aromas doces. A brisa da manhã vai trazendo os odores dos campos em redor, brindando-nos com a alegria do dia que começa. É hora de avançar, firme e segura, aproveitando as oportunidades que o dia oferece. Cada coisa e cada ser está no lugar onde tem de estar. O lugar certo.

Para mim… Para mim, inexplicavelmente, ou talvez não, este lugar que é Arouca sinto-o como o meu lugar de sempre. O seu Mosteiro, as suas avenidas, a Praça, o casario, a estrada de Alvarenga, o rio Paiva, a serrania, tudo, vá-se lá saber porquê, aparece-me como surgido de um passado gravado em mim, como se sempre ali tivesse estado. Ter-me vindo instalar neste concelho, parece-me um regresso a um lugar de onde nunca deveria ter saído. De onde me parece, ao mesmo tempo, nunca ter, realmente, saído.

Os caminhos cruzam-se e descruzam-se. Em cada curva da estrada da vida, aproximamo-nos e afastamo-nos dos lugares que amamos. Às vezes, é sem retorno. Implacável. Outras vezes, a vida é mais gratificante e permite-nos retomar o que sentimos como nosso. Pelo menos, temporariamente. Nada é definitivo. 

Sou uma pessoa de sorte. Hoje estou aqui, no lugar certo. No lugar que é meu. No lugar que o meu coração elegeu.

Maria de Lurdes Duarte