O lugar de Figueiredo
ali na encosta do Burgo era um lugar famoso. Tinha lá um campo de futebol,
coisa rara mas com um valor imenso para todos. Numa sociedade muito fechada
como a de então, aquele espaço servia para mostrar que todos queriam ter asas e
mostrava que a liberdade conseguia dar nos momentos de puro prazer. Os meus
pais, nem me lembro bem porquê, deram me uma bola de futebol . Não sei de que
material, só me recordo dos ruídos que fazia quando se chutava e dos gritos,
uns de espanto, outros de alegria que se ouviam logo a seguir. Recebi a
embrulhada num papel muito colorido que pressentia coisas festivas e depois de
passada a surpresa foram difíceis as negociações para uma utilização única e
exclusiva nos momentos de folga ,e esses eram poucos apesar do tempo ser muito.
Que linda aquela bola redondinha e com medidas para poder jogar futebol. Daí a
importância do campo. Eu que nem era de Figueiredo gostava de passar por lá
quando regressava a casa só para olhar aquele espaço que mesmo vazio estava sempre
repleto de promessas e de alegrias enormes. Figueiredo era um lugar como outros,
nem era bonito nem feio era um lugar de risca ao meio, não sei se a estrada
separava as casas se as casas nasceram e preferiram ficar ao lado desta. Passava por lá a estrada que durante muito
tempo foi a principal ligação para o cimo da serra, até a carreira semanal do
Calçada a frequentava e Figueiredo era conhecido por local de passagem,
agrícola, mas apesar de tudo com uma população abundante que lutava pela vida e
acolhia outros que o tinham feito lá pelas terras distantes. Ontem como hoje.
Terra dos Reimões, dos da Nogueira, dos do Pinho ali na curva, dos Marinhas,
das lojas do Cardoso e do Júlio Rafeiro, duas boas mercearias, dos do Júlio, o
do Benjamim, e entre mais, da casa do Alto que lá bem em cima tudo observava e
pela vista compensava o esforço da subida. E tinha também a capela do Senhor da
Boa Morte, um nome estranho, que algum santo descontente com a vida decidira
ser apelativo. Ali ao lado via passar os
moradores que respeitosamente se inclinavam ao dirigir lhe um olhar e os que
continuavam serra acima muitos distraídos nem se apercebiam de tal pequena
capela. E a padaria, que todos os dias exceto aos domingos nos permitia ter
sempre o pão mais fresco da zona. E um alfaiate e mais artistas e mais
profissões, um lugar para se viver com tranquilidade numa pequena comunidade.
Mas o mais importante de Figueiredo era o campo da bola. Já na descida para o
Marvão a dois passos da igreja de Salvador. Sabe se que o proprietário do
terreno, um Dr. muito conhecido, com grande amor pelo desporto, amante do
futebol, as suas visitas para ver jogar o Porto eram assíduas, resolveu fazer
um campo de futebol para que os filhos que eram 3 tivessem a possibilidade de
praticar o desporto que tanto gostava. Assim o fez e de um anónimo campo
agrícola, com mais ou menos cavadela, nasceu o Campo de Figueiredo, tão famoso
na altura como qualquer conceituado estádio olímpico dos dias de hoje. Sempre
que podíamos calçavam se os sapatos mais velhos, que jeito deu a minha bola,
não era preciso juntar sequer 11 para cada lado, era com os que estavam e lá se
passava uma tarde cheia de gritos, correrias e uma algazarra que só era
interrompida com a presença de algum pai mais enervado e com uma vara na mão.
Para nós, os de Figueiredo como tinham os filhos do Dr. na equipa e eram
proprietários do campo jogavam a um nível elevado e esperavam algum recato de
quem os desafiava. Mas precisavam de adversários e aí entravam os de Lourosa
com os da Obra à frente, mais os do Coelho, os da Quinta, tudo família, e
reforçavam se com os dos Milheiros, um ou outro do Marelha, do Piolho, e se preciso fosse um do Arregaçado que eram
muitos e a escolha era fácil. Durante alguns dias até se reforçaram com um
brasileiro que veio passar férias, jogava pouco mas falava com o sotaque do
Pelé e isso já era suficiente sinal para atemorizar o adversário. E jogava se até ser escuro nem contando o
resultado porque o que interessava era a brincadeira. E quando vinham os de
Sta. Maria do Monte? com reforços de Lourosa de Matos e até um ou outro quase
adulto para intimidar, e os da Vila, era como receber o Porto ou o Benfica, só
vedetas. Eram jogos sem fim, tardes imensas caneladas e calcadelas, encontrões
e arranhões que levavam uma eternidade a cicatrizar mas valia a pena. Aprendi
lá o que queria dizer amizade, espírito de equipa, solidariedade, convívio,
igualdade, numa sociedade tão vincadamente em socalcos de classe. Quando nos
aproximava-mos do campo aquela ultima curva era já dada em velocidade de
aquecimento, todos queriam ser os primeiros como se esse facto nos ajudasse no
jogo seguinte. Depois uns pontapés à baliza, sem redes, e com cada vez mais
impaciência formavam se as equipas porque o dia mesmo que com muitas horas de
dia era sempre curto e não dava para recuperar resultados menos felizes. Agora
tantos anos depois ainda lá passo e ouço, é impossível não ouvirem todos, os
gritos, os incentivos, as ameaças, os pedidos, passa, passa, chuta, foi golo,
falta, aquelas enormes tardes de tanta transpiração que já não cabem nas
memórias. Agora tantos anos depois passo lá e vejo um pomar todo orgulhoso por
estar ali à beira da estrada, todo alinhado e viçoso. E não quero que perca o
orgulho, não vou dizer uma palavra e vou voltar só com os meus pensamentos. Com
que cara ficaria se soubesse que ali foi o famoso Campo de Futebol de
Figueiredo. Vamos todos guardar este segredo. Pode ser que um dia… Apesar de
tudo...