24 de março de 2020

A Pensar Alto. O campo da bola de Figueiredo... anos sessenta do século passado.

O lugar de Figueiredo ali na encosta do Burgo era um lugar famoso. Tinha lá um campo de futebol, coisa rara mas com um valor imenso para todos. Numa sociedade muito fechada como a de então, aquele espaço servia para mostrar que todos queriam ter asas e mostrava que a liberdade conseguia dar nos momentos de puro prazer. Os meus pais, nem me lembro bem porquê, deram me uma bola de futebol . Não sei de que material, só me recordo dos ruídos que fazia quando se chutava e dos gritos, uns de espanto, outros de alegria que se ouviam logo a seguir. Recebi a embrulhada num papel muito colorido que pressentia coisas festivas e depois de passada a surpresa foram difíceis as negociações para uma utilização única e exclusiva nos momentos de folga ,e esses eram poucos apesar do tempo ser muito. Que linda aquela bola redondinha e com medidas para poder jogar futebol. Daí a importância do campo. Eu que nem era de Figueiredo gostava de passar por lá quando regressava a casa só para olhar aquele espaço que mesmo vazio estava sempre repleto de promessas e de alegrias enormes. Figueiredo era um lugar como outros, nem era bonito nem feio era um lugar de risca ao meio, não sei se a estrada separava as casas se as casas nasceram e preferiram ficar ao lado desta. Passava por lá a estrada que durante muito tempo foi a principal ligação para o cimo da serra, até a carreira semanal do Calçada a frequentava e Figueiredo era conhecido por local de passagem, agrícola, mas apesar de tudo com uma população abundante que lutava pela vida e acolhia outros que o tinham feito lá pelas terras distantes. Ontem como hoje. Terra dos Reimões, dos da Nogueira, dos do Pinho ali na curva, dos Marinhas, das lojas do Cardoso e do Júlio Rafeiro, duas boas mercearias, dos do Júlio, o do Benjamim, e entre mais, da casa do Alto que lá bem em cima tudo observava e pela vista compensava o esforço da subida. E tinha também a capela do Senhor da Boa Morte, um nome estranho, que algum santo descontente com a vida decidira ser apelativo. Ali ao lado via passar os moradores que respeitosamente se inclinavam ao dirigir lhe um olhar e os que continuavam serra acima muitos distraídos nem se apercebiam de tal pequena capela. E a padaria, que todos os dias exceto aos domingos nos permitia ter sempre o pão mais fresco da zona. E um alfaiate e mais artistas e mais profissões, um lugar para se viver com tranquilidade numa pequena comunidade. Mas o mais importante de Figueiredo era o campo da bola. Já na descida para o Marvão a dois passos da igreja de Salvador. Sabe se que o proprietário do terreno, um Dr. muito conhecido, com grande amor pelo desporto, amante do futebol, as suas visitas para ver jogar o Porto eram assíduas, resolveu fazer um campo de futebol para que os filhos que eram 3 tivessem a possibilidade de praticar o desporto que tanto gostava. Assim o fez e de um anónimo campo agrícola, com mais ou menos cavadela, nasceu o Campo de Figueiredo, tão famoso na altura como qualquer conceituado estádio olímpico dos dias de hoje. Sempre que podíamos calçavam se os sapatos mais velhos, que jeito deu a minha bola, não era preciso juntar sequer 11 para cada lado, era com os que estavam e lá se passava uma tarde cheia de gritos, correrias e uma algazarra que só era interrompida com a presença de algum pai mais enervado e com uma vara na mão. Para nós, os de Figueiredo como tinham os filhos do Dr. na equipa e eram proprietários do campo jogavam a um nível elevado e esperavam algum recato de quem os desafiava. Mas precisavam de adversários e aí entravam os de Lourosa com os da Obra à frente, mais os do Coelho, os da Quinta, tudo família, e reforçavam se com os dos Milheiros, um ou outro do Marelha, do Piolho, e se preciso fosse um do Arregaçado que eram muitos e a escolha era fácil. Durante alguns dias até se reforçaram com um brasileiro que veio passar férias, jogava pouco mas falava com o sotaque do Pelé e isso já era suficiente sinal para atemorizar o adversário. E jogava se até ser escuro nem contando o resultado porque o que interessava era a brincadeira. E quando vinham os de Sta. Maria do Monte? com reforços de Lourosa de Matos e até um ou outro quase adulto para intimidar, e os da Vila, era como receber o Porto ou o Benfica, só vedetas. Eram jogos sem fim, tardes imensas caneladas e calcadelas, encontrões e arranhões que levavam uma eternidade a cicatrizar mas valia a pena. Aprendi lá o que queria dizer amizade, espírito de equipa, solidariedade, convívio, igualdade, numa sociedade tão vincadamente em socalcos de classe. Quando nos aproximava-mos do campo aquela ultima curva era já dada em velocidade de aquecimento, todos queriam ser os primeiros como se esse facto nos ajudasse no jogo seguinte. Depois uns pontapés à baliza, sem redes, e com cada vez mais impaciência formavam se as equipas porque o dia mesmo que com muitas horas de dia era sempre curto e não dava para recuperar resultados menos felizes. Agora tantos anos depois ainda lá passo e ouço, é impossível não ouvirem todos, os gritos, os incentivos, as ameaças, os pedidos, passa, passa, chuta, foi golo, falta, aquelas enormes tardes de tanta transpiração que já não cabem nas memórias. Agora tantos anos depois passo lá e vejo um pomar todo orgulhoso por estar ali à beira da estrada, todo alinhado e viçoso. E não quero que perca o orgulho, não vou dizer uma palavra e vou voltar só com os meus pensamentos. Com que cara ficaria se soubesse que ali foi o famoso Campo de Futebol de Figueiredo. Vamos todos guardar este segredo. Pode ser que um dia… Apesar de tudo...