20 de setembro de 2020

Relato do prof. Fernando Miranda sobre as verdadeiras origens e objectivos da Feira das Colheitas

Este ano, por razões óbvias, não pode mesmo ocorrer aquele que é, indiscutivelmente, o evento mais relevante de Arouca e dos Arouquenses: a Feira das Colheitas...Este evento (que, no ano de 1944, não surgiu de qualquer política central do Estado Português) foi idealizado, fundado, organizado e promovido durante décadas, por António de Almeida Brandão (n.1893-m.1986), a partir do Grémio da Lavoura de Arouca, do qual foi um dos seus fundadores, tendo sido, mais tarde, o fundador e presidente da Cooperativa. 
António de Almeida Brandão, nessa altura, era gerente do Grémio da Lavoura de Arouca (o único cargo que teve remunerado), tendo sido, cerca de dois anos mais tarde, eleito presidente do Grémio...Ao tempo, em 1944, também presidia à Câmara Municipal de Arouca...
Ninguém melhor que o prof. Fernando Miranda (um arouquense ilustre que viveu e acompanhou a Feira das Colheitas desde o seu início) para descrever as verdadeiras origens e objectivos da Feira das Colheitas, bem como o perfil do seu fundador, organizador e promotor:

"(...) Estávamos a caminho do fim da II Guerra Mundial. A lavoura agonizava. Os pardieiros proliferavam. O medo e a inépcia confundiam-se num sentimento de abandono, senão de verdadeiro desespero. Cultivar as terras para quê? Esta a grande e permanente interrogação que pairava no ar e invadia a alma dos que, tendo labutado de sol a sol, durante toda uma vida de sacrificio, de suor e de lágrimas, fazendo, da charrua e da enxada, do albião e da picareta, os inseparáveis instrumentos com que desbravavam e rompiam uma terra cada vez mais madrasta, se viam, agora, entregues a si próprios, sem esperança nem futuro. Foi neste quadro que nasceu a Feira das Colheitas, em Arouca. 
 Era, à altura, gerente do Grémio da Lavoura, o senhor António de Almeida Brandão. 
 Homem conhecedor dos problemas agrícolas, defensor devoto da preservação da natureza, um verdadeiro ecologista, quando ainda nisto se não se falava (!), pessoa de poucas falas e de muito trabalho, dotado de uma invulgar inteligência e senhor de uma vasta cultura, ele escondia todas estas qualidades por detrás de um rosto austero que lhe não suscitava simpatias, como atrás se diz, mas gerava confiança e respeito. Dele dizia meu pai, o mais insuspeito de todos: «é inteligente, é sério, é culto, é trabalhador e devotado às coisas e às causas de Arouca e isso me basta...»
 Volvido mais de meio século sobre a realização da primeira Feira das Colheitas e colocando-nos no tempo em que isso aconteceu, só, de facto, um grande homem, de hercúlea força de vontade, de um estoicismo a toda a prova, de uma extraordinária visão, foi capaz de arriscar, de meter ombros a tão ingente quão delicada tarefa.
 Ingente porque foi indispensável que ele calcorreasse o concelho de lés a lés, fazendo reuniões prévias em cada freguesia e aí instalando comissões encarregadas de proceder ao peditório tendente à angariação de fundos para obviar às despesas da festa e organizar um grupo folclórico que levaria, à Vila, as danças e cantares locais. Delicada, porque a mensagem era dirigida a um auditório desiludido, amorfo, abandonado, envelhecido.
Mas as comissões eram constituídas por pessoas a que, agora, se chamam "líderes de opinião" e esse facto constituía, desde logo, um forte contributo para o sucesso da tarefa. E nem este pormenor escapou a Almeida Brandão. A sua voz, de ansiedade feita, o seu verdadeiro grito de alerta, de revolta incontida, o seu veemente apelo, chegavam, aos lavradores, através da palavra autorizada dos chamados "homens bons" de cada freguesia. Só, assim, poderia encontrar eco o esforço exigido no melhoramento do trato das terras e dos gados e o consequente aumento da produção agrícola e leiteira: a "Melhor Seara", a "Melhor Fruta", a "Melhor Adega", o "Melhor Linho", bem como o "Concurso da Raça Bovina Arouquesa". Só, deste modo, as promessas de prémios, às melhores searas e aos melhores gados, se revestiam de credibilidade.
 É que, D. Dinis, ficava séculos para trás e, da Lei das Sesmarias (D. Fernando -1375), nem uma vírgula restava...
 Arouca, terra essencialmente agrícola, fechada a contactos com o exterior, rica em tradições e cujo povo prima em ser bairrista, não deixou de responder à chamada, em toda a sua extensão e latitude. E, então, deu-se aquilo que refuto não só de salutar e maravilhosa congregação de esforços, mas também do maior e mais profundo acontecimento cultural da história de Arouca. 
 Do fundo das arcas, saltaram maravilhosos bordados e outras relíquias artesanais, que deslumbraram aborígenes e forasteiros, mas também lindos trajes que ali permaneciam à espera de amortalharem as suas ciosas donas. Da memória lúcida da última geração possuidora de tais relíquias, brotaram, em catadupa, música e canções, verdadeiros tratados etnomusicais e as danças, duma beleza coreográfica ímpar. As noites de Setembro daquele ano já longínquo, tornaram-se uma continuada festa. Jovens e velhos e mesmo as crianças aderiram de corpo e alma à novidade. Eram os ensaios dos Ranchos. Era a pedrada no charco. Era o reviver dos velhos tempos. Eram as cantas, as danças, os cantares ao desafio. Tudo isto num assomo de comunitarismo e de alegria que contrastava, flagrantemente, com o estado da Nação, mas traduzia, por um lado, o desabafo do sofrimento, por outro, a esperança na agonia duma guerra e o vislumbrar de dias melhores.
 Foi, de facto, lindo de se ver. Mas lindo foi também o corolário de todo este trabalho, de toda esta azáfama - A FEIRA DAS COLHEITAS. E se, como digo atrás, as noites do mês de Setembro foram de festa em cada uma das freguesias, naquele último fim-de-semana, para a Vila, convergiram, em massa, os Ranchos e as suas gentes, transformando a sede do Concelho num verdadeiro mar de povo, estreitecendo a Avenida e apertando a Praça, em desfiles coloridos de esfusiante alegria, cada um tentando apresentar-se melhor que o outro, sem artifícios que a pureza e a autenticidade não consentiam, mas com o garbo e o aprumo que os grandes momentos exigem.
 Foi um desfile de cor e alegria, de caras bonitas e de lindas vozes, de verdadeiros artistas da harmónica, da viola, do cavaquinho, ferrinhos e bombo, que outros não eram os instrumentos usados em Arouca, se exceptuarmos a concertina que se foi alojando no lugar da harmónica e a flauta que nunca passou de divertimento individual.
 Foi assim que nasceu a Feira das Colheitas e, com ela, a possibilidade de não deixarmos perder-se, no tempo, um património valiosíssimo da nossa história. Mas foi assim, também, que nasceram os agrupamentos folclóricos, alguns dos quais ainda hoje se mantêm, em toda a sua pujança, como baluartes intransigentemente fiéis das tradições mais profundas do Povo de Arouca, ao nível das danças e cantares, dos trajes e tocatas, em síntese, do folclore, da música popular e da etnografia arouquense.

E porque falar da Feira das Colheitas é falar de Arouca, de um bom naco da sua história e de um dos seus maiores e mais luzentes marcos culturais, eu evoco, aqui, a memória do seu criador, prestando-lhe a minha simples, singela, mas profundamente sentida homenagem. Homenagem ao homem que, um dia, foi capaz de um rasgo de génio, de um verdadeiro golpe de asa, de um assomo de inteligente assunção do sentir de um povo e de transmutá-lo, fazendo-o despertar da profunda letargia em que estava mergulhado. (...)"

Extracto da comunicação do prof. Fernando Miranda, na apresentação do livro de António de Almeida Brandão, Memórias de um Arouquense, a 19 de Junho de 1999, na vila de Arouca.
Agradeço, ao Dr. Óscar de Pinho Brandão, pela cedência do texto integral do prof. Miranda.