27 de março de 2020

Que o milagroso São Pedro de Sanfins nos valha!

Chaves de São Pedro, gravadas na empena da fachada posterior da
capela de São Pedro, de Sanfins, Várzea
Corria o ano de 1734, pouco mais ou menos, estando gravemente enferma uma pequena, de seu nome Josefa Rosa, do lugar de Eidim, da freguesia de Rossas, acamada em sua casa, com uma inchação de sete palmos do ventre, sem poder mover-se havia cerca de dois anos e meio, e estando já quase moribunda e com assistência continua, de dia e de noite, de familiares e vizinhos, que faziam o que podiam para auxiliar a pobre pequena no último trânsito da vida, quando sua mãe, D. Maria Teresa de Jesus, tendo ido na manhã do Domingo da Paixão à igreja confessar-se e comungar por intenção da dita sua filha e, depois, à tarde, a uma pequena ermida, lá no cimo do monte, dito de Sanfins, fazer orações a São Pedro, suplicando-lhe que pedisse ao Senhor pela desesperança daquela criatura ou pela sua saúde, conforme fosse sua Divina vontade, o que esperava até ao seu dia festivo, e depois de feita esta oração e pedido, continuado em sua casa em oração, de manhã e de tarde e nas horas da Santíssima Trindade, diante do Santo Cristo, do seu oratório, até à véspera do dia de São Pedro, altura em que, diante do seu Santo Cristo, que do oratório recebeu em suas mãos, pondo-se de joelhos com Ele a uma janela virada para o monte da ermida de São Pedro, suplicou ao Santo Apóstolo que era chegada a gloriosa noite, véspera do seu dia festivo e glorioso, em que confiava e esperava por sua intercessão o alivio e remédio da saúde de sua filha, tão enferma nessa noite. Chegada a hora da recompensa, querendo os familiares e vizinhos fazer a costumada assistência à dita enferma, que estava ungida temendo que naquela noite morresse, disse ela que fossem todos descansar do grande trabalho, que com ela haviam tido nas demais noites, porque se sentia algum tanto aliviada; e, resolvendo-se todos, descansou ela também, pegando no sono. Terá então vislumbrado em sonhos que um varão respeitável de corpo agigantado vestido de azul, que disse ser São Pedro, lhe pôs o pé sobre a referida inchação e disse: levanta-te e vem comigo à minha capela, que amanhã se concretizará um milagre; respondeu a enferma: eu não posso levantar-me; e então vislumbrou, também ao seu lado, de sobrepeliz vestido, São Gonçalo (a cujo Santo, que se venera na matriz de Rossas, também a dita mãe em todo o tempo tinha oferecido sua enferma filha), que lhe disse: eu te dou a mão. E, com efeito, sonhando, ela se amparou e levantou, acompanhando depois São Pedro à dita sua ermida, desaparecendo aí o Santo. Acordando assustada, parecendo-lhe que estava em uma devesa, chamou em voz alta por sua mãe, a cujas vozes todos acordaram, achando-se ela em pé junto ao leito de sua mãe, sem inchação nem moléstia alguma, para espanto de todos, que a trémula luz a viram sã como se nunca tivera enfermidade alguma, atribuindo a surpreendente cura a São Pedro. Com grande alegria e contentamento de todos, caminhou a pequena com seus irmãos pela porta fora, referindo o beneficio que havia recebido por intercessão do Santo Apóstolo, ao que se apercebendo os vizinhos, tendo também um menino molestado com um pólipo no nariz, logo o ofereceram a São Pedro, pedindo à devota mãe e filha tocada pelo Santo que orassem também por aquele menino para que São Pedro também nele fizesse um milagre tirando-lhe aquela queixa incurável, pois que eles vizinhos foram incansáveis na assistência daquela menina no longo período de sua moléstia. E com efeito, no dia seguinte se achou o menino sem o pólipo nem sinal dele. Amanhecendo o dia 29 de Junho do dito ano, foram todos dar as Graças de suas casas a São Pedro e assistir à festividade que em honra do Santo se celebrou nesse dia. E de tão viva a representação de ir a pequena enferma com o Santo à sua capelinha, seguiu ela nesse dia diante de todos, dizendo conhecer o caminho, sem nunca lá ter ido em tempo algum, ficando a dita ermida a um quarto de légua de sua casa, por trás de um grande monte e outeiros, com a qual sempre custava a acertar a outros que já lá tinham ido mais vezes, acertou ela com a dita ermida como se lá tivesse ido todos os dias. E havendo sermão fez publico o pregador, com ela Josefa Rosa presente e à vista de todos, o milagre que se havia nela realizado. Tanto quis o Santo corroborar este milagre que, sendo ela Josefa Rosa chamada ao Porto por umas tias e tios, afim de aí contar a Graças que havia recebido, aí chegada, foi chamada a casa de um enfermo que estava entrevado e sem esperança de vida havia cerca de um ano, o qual, constando-lhe aquele milagre, se quis oferecer àquele Santo, pedindo à menina tocada, que por ele fizesse oração e que a devota sua mãe também rogasse e orasse por ele a São Pedro, oferecendo-lhe uma oferta em dinheiro para reedificação e renovação da sua capela. Permitiu Deus que logo depois lhe passasse aquela queixa por intercessão de São Pedro e, cumprindo logo a promessa se fez de novo uma capela grandiosa, com o milagre representado em uma pintura posta num quadro, onde hoje existe a mesma imagem de São Pedro e se instituiu uma festa anual aos 29 de Junho e uma celebração aos 29 de todos os meses do ano. Como se já não fossem de monta as Graças recebidas, contou ela Josefa Rosa que, quando em sonho foi com São Pedro à sua capelinha, lhe dissera o Santo que passado algum tempo haveria de se purgar e sangrar, pois que daí a um ano haveria de padecer de outra grande enfermidade e passado dois anos havia de se livrar de um grande perigo. Destas duas circunstâncias não se fez caso, atribuindo-se a fantasia do entendimento, mas, o certo é que, daí a um ano completo, estando ela no Porto, teve uma grande enfermidade, em virtude da qual se purgou e sangrou como lhe tinha insinuado o Santo e logo se encontrou inteiramente sã, afirmando que assim lhe dissera São Pedro, do que sempre tivera lembrança, assim como de perigo que se havia de livrar e, com efeito, completos dois anos, estando ela descuidada fazendo uma cama, um seu primo, já rapaz, lhe disse: prima Josefa queres ver dar-te um tiro? E virando-se ela para ele, viu-se apontada de uma espingarda, atacada e carregada, ao que, aflita, invocou em altas vozes: São Pedro valei-me! E, proferidas as Santas palavras, disparado o tiro, que lhe estava apontado, a não tocou nem ofendeu, num fortúnio que a todos admirou, prostrando-se ela depois diante do Santo Cristo do seu oratório, dando muitas graças e louvores a Deus com uma fé viva de que São Pedro, seu intercessor, a livrou também deste perigo que trazia em lembrança desde o dia em que, em sonhos, acompanhou o Santo à sua capelinha.

Transcrição livre e inédita do relato feito pelo Reverendíssimo Bispo de Lamego, com vista ao reconhecimento e confirmação do «Milagre de S. Pedro de Arouca, venerado na sua Imagem adorável na sua Ermida, sita na Devesa e Monte de S. Fins da freguezia de Varzia, Bispado de Lamego, feito a Josepha Rosa de S. Pedro, filha do Cappitam Félis Soares de Carvalho e de sua mulher D. Maria Thera de Jesus, que existe viuva na idade de noventa annos, moradora no lugar de Eydim da freguezia de N. Senhora da Conceição da Sagrada Religião de Malta de Rossas, do Concelho de Arouca...» (transcrição literal).

O pedido para reconhecimento e autenticação foi feito por Constantino Soares de Carvalho, irmão de Josefa Rosa de S. Pedro, em carta dirigida a Sua Majestade o Rei D. Pedro III, o qual, para o efeito, ordenou ao Bispo de Lamego que mandasse fazer as diligências de estilo com as exactas inquirições pelo pároco da freguesia de Várzea, na qual está sita a mesma ermida, como também pelo pároco de Santa Marinha de Tropeço, também vizinho da dita ermida, e pelo pároco da freguesia de Rossas, também contigua ao mesmo lugar aonde se venera a dita Imagem do Apóstolo São Pedro, tudo afim de se anunciar o dito Milagre.

Não estão juntas a este processo (que por felicidade encontrei nos arquivos da Torre do Tombo, e está já disponível), as ditas inquirições, nem sei se algum dia chegaram a realizar-se, não se tendo, nunca, reconhecido e autenticado aqueles sucessivos milagres de São Pedro de Arouca, venerado na capela de Sanfins, de Várzea, cuja reedificação e melhoramento se ficou a dever àquelas circunstâncias.

Capela de São Pedro, de Sanfins, Várzea
Valha-nos este conhecimento por felicidade obtido recentemente e tratado nos meus apontamentos sobre a Comenda da Ordem de Cristo de Várzea, coroado com a belíssima oração que D. Maria Teresa de Jesus, do lugar de Eidim, de Rossas, pôs nas sagradas mãos da milagrosa imagem de São Pedro, nada a despropósito neste dia em que, da sua Basílica, no Vaticano, será feita a bênção Urbi et Orbi pelo Santo Padre, e que passo a transcrever:

«Glorioso Apóstolo S. Pedro, Príncipe da Igreja de Deus, Discípulo e Defensor de Jesus Cristo, Santo, em quem o Senhor se mostrou sempre admirável, Vós, que intercedeste ao mesmo vosso Divino Mestre, que é o que somente faz as maravilhas e somente o que põe os prodígios sobre a terra, que fizesse a singular maravilha e obrasse o estupendo prodígio de restituir a saúde de muitos tempos desejada a minha filha Josefa Rosa, achando-se gravemente enferma, desconfiada de todo o remédio humano, e  em perigo de vida naturalmente inevitável, sendo por vossa piedosa e eficaz intercessão e por vossas sagradas mãos levantada do leito de dores em que jazia e posta em pé repentinamente sã, como se nunca houvesse padecido a menor enfermidade, como quem foi tornada da sombra da morte à luz da vida, concedei propício o mesmo favor da vossa poderosa e eficaz intercessão aos nossos bons Reis e Senhores que no mundo governam, livrando-os de enfermidades e rogando ao mesmo Senhor Deus de todas as virtudes, que os encha das mesmas virtudes e derrame sobre eles muitas bênçãos afim  de que governem os seus fieis povos em paz e felicidade e recebam em prémio do seu feliz e pacífico reinado neste mundo uma prolongada e Santa vida, e no outro, a merecida coroa de perpétua e interminável glória: tudo pelos merecimentos, piedade e clemência do mesmo vosso Divino e amado Mestre e Senhor, que vive e reina com o Padre e Espírito Santo por todos os séculos dos séculos. Amém.»

Por fim, apenas uma pequeníssima nota biográfica e genealógica sobre Josefa Rosa de S. Pedro: era filha do Capitão de Malta e Monteiro-Mor do concelho de Arouca Félix Soares de Carvalho e de sua mulher D. Maria Teresa de Jesus, aquele natural do lugar da Cavada, freguesia de Rossas, e esta natural de Vila Nova de Gaia, ambos moradores no lugar de Eidim, da referida freguesia, onde tiveram, entre muitos outros filhos, Josefa Rosa, baptizada a 17 de Outubro de 1726, que, por curiosidade, vem a ser tia avó paterna de António Soares Júnior, ex-voto de Nossa Senhora do Campo, de Rossas.

Oxalá que o milagroso São Pedro de Sanfins nos valha e que a nossa comunidade passe imune a este flagelo que hoje estamos a viver.